sábado, 2 de fevereiro de 2013

Livros raros - 3

Livros raros não são apenas os que dificilmente se podem encontrar à venda ou de que apenas existem escassos exemplares. Livros raros são também aqueles que a sua natureza ou qualidade tornam raros.

As compilações epistolares são relativamente raras entre nós. Mas o acervo de cartas que foi publicado no volume Camilo Íntimo. Cartas inéditas de Camilo Castelo Branco ao Visconde de Ouguela (Clube do Autor, 2012) ganha uma dimensão de raridade ainda mais acentuada. Em primeiro lugar, pelo factor de risco associado à publicação de um livro deste género, em tempos como os que vivemos. E quando me refiro aos tempos em que vivemos, refiro-me sobretudo às circunstâncias em que vive a edição de livros. Em segundo lugar, pelo facto de a correspondência de Camilo, aliás abundante, ser bastante bem conhecida dos estudiosos camilianistas. Tal facto permitia saber da existência do presente acervo, embora se ignorasse o seu paradeiro. A saga da sua descoberta, no Brasil, é descrita pelo Arquitecto Campos Matos e pela Prof.ª Beatriz Berrini nas primeiras páginas do livro. Este conjunto de factores permitiu a emergência de um outro elemento de raridade: que os estudiosos de Camilo e o público em geral partilhassem em simultâneo o conhecimento desta grande quantidade de cartas inéditas.
Na frase escolhida para figurar em epígrafe, tirada de A epistolografia em Portugal, Andrée Crabbé Rocha começa por afirmar que «Todo o epistolário camiliano constitui um documento de primeira ordem para o conhecimento íntimo do homem-tragédia de Seide, das suas estranhas reacções, e do seu génio agreste e contraditório». A afirmação aplica-se, como uma lei, ao presente epistolário.
As cartas agora publicadas não revelam um Camilo diferente, mas deixam-nos entrevê-lo longamente na sua intimidade dolorosa ao mesmo tempo que confirmam plenamente o que diz João Bigotte Chorão no posfácio: «... ele distingue-se dos seus confrades por não ser propriamente um escritor de ideias, mas sobretudo um escritor de sentimentos e ressentimentos, patético e lúdico, não raro vulgar e fora do comum, de uma brevidade telegráfica ou de uma larga eloquência. E qualquer que seja o registo e a dimensão, um raro domínio da língua, que conhecia e usava como poucos».
Para além da amizade e devoção que estão na própria génese desta correspondência, encontramos o Camilo sofredor e queixoso («De saúde vou piorando, graças a Deus», diz em Janeiro de 1873;«Quanto a saúde, não falemos de tal. Eu já não conservo sequer uma vaga lembrança do que seja saúde», diz em Abril de 1877; e em Abril de 1888: «Estou quase cego, porque algumas horas de escrita me cegaram a circunferência da íris, de modo que apenas vejo um círculo mais estreito do que este papel. Todas as minhas infelicidades de corpo e alma eram delícias antes de eu sentir esta suprema desgraça. Se isto progredir, resolverei depressa a crise».).
O Camilo crítico («Já leste o Crime do padre Amaro do Eça de Queiroz? Li alguns capítulos na Revista de Ocidente [sic], e achei-os excelentes. Vi anunciado agora o romance em livro. Esse rapaz vem tomar a vanguarda a todos os romancistas: É um admirável observador; e, conquanto faça pouco caso das imunidades da língua, tem artes de fazer adoráveis os defeitos», carta de 1876).
O Camilo contundente («Principio a esquecer a ortografia. Se isto assim vai neste deperecimento, é tão certo eu descambar em idiota que já às vezes cuido que tenho dentro dos meus intestinos grossos o Teófilo Braga e uma ténia», 1877).
O Camilo desiludido («Que me dera ouvir-te dizer que estás farto de te sacrificares a uma ideia impossível neste país, e com estes homens! Ideia que se maculou desde que certos homens a escreveram no seu estandarte. Ora quando certos homens conspurcam uma ideia generosa, os dignos que lhe ficam fiéis morrem no serviço dela, mas morrem inglórios»,1872; «Contas-me singular maroteira dos juízes e do governo. Acredito-a por ser tão refinadamente portuguesa. Isto é um país de infâmias», Março de 1873).
O Camilo escravo das letras («Estou além de tudo sobrecarregado de compromissos literários que esmagam. Só de pensar neles me tira toda a vontade de trabalhar. Imagina tu uma obra de 1600 páginas - a versão de um dificílimo Dicionário de Educação e ensino; variadíssima ciência, com uma tecnologia ainda bárbara em Portugal! Depois, 2 romances originais, um que hei-de entregar em 15 de Janeiro, e outro em 15 de Março. A minha independência tem-me saído muito cara. Trabalho há 22 anos, tenho 101 volumes publicados, e tenho a honra de te dizer que tendo ganho 36 contos a escrever, e tendo gasto 12 contos do meu património, os meus filhos não têm a herdar de mim 2 patacas da Junta Suprema», Dezembro de 1872; «Cheguei hoje do Porto onde fui passar alguns dias com a minha filha que está no mesmo declive da sepultura. E um homem nesta situação escreve As Novelas do Minho, onde há páginas que fazem rir os leitores, e me granjeiam a reputação de folgazão», Julho de 1877; «Sabes o que faço? Trabalho - e resisto agarrado aos livros como às pranchas do naufrágio», 1882).
Não cabem nesta breve nota, nem por sombras, todos os motivos de interesse deste conjunto de cartas. Como aquele desabafo com que, em 1876, declara que está cansado dos livros e da falta de novidade que encontra neles: «Sabes o que me ampara? É esta absoluta solidão, esta tristeza do ar e da terra, o rufo da chuva nas vidraças, e 4 cães a latir de noite como se vissem a lua».
Livro raro, portanto, este Camilo Íntimo, e indispensável. Raro até pela sua robustez editorial, mas não sem mácula, pois infelizmente alguns aspectos mereciam maiores cuidados (incompreensível a variação da entrelinha e a irregularidade das anotações, por exemplo). Mas, sem dúvida, um dos livros mais interessantes dos últimos tempos.